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Um telescópio, mas apontado a todos nós

Na mesma semana em que se conheceram as primeiras imagens do telescópio James Webb, ficámos também a saber que uma empresa americana na área da defesa desistiu da compra de um dos mais notórios e controversos fornecedores de instrumentos de ciberespionagem. O que une tais eventos aparentemente tão pouco relacionados?

Por Henrique Carreiro . 09/08/2022

Um telescópio, mas apontado a todos nós

O ponto de união é que a empresa L3Harris, que teve participação muito ativa na criação do telescópio James Webb é também a mesma que andou em negociações para comprar ativos da firma Israelita NSO. As negociações terão, alegadamente, falhado por oposição da Administração Biden, que já havia colocado a NSO numa lista negra de fornecedores devido ao bem conhecido facto de os respetivos produtos terem sido usados para espiar jornalistas e ativistas de direitos humanos, para além de políticos em muitos regimes aliados dos Estados Unidos.

Sendo a L3Harrys um fornecedor de referência de material de defesa para os Estados Unidos, a Casa Branca foi mesmo muito clara no sentido de afirmar que a aquisição das ferramentas da NSO constituiria um problema sério de segurança para os sistemas e pessoas do país. Uma das questões em aberto, segundo partes conhecedoras das negociações, era se o governo israelita teria a possibilidade, após a aquisição, de continuar a usar as ferramentas da NSO. Apesar da aliança entre Israel e os Estados Unidos, nada impediria que o governo dos Estados Unidos fosse, ele próprio, um alvo.

É evidente que, se de facto o negócio não avançar, tal significará apenas algo que não acontece a curto prazo, mas tenderá a acontecer no longo prazo, de uma forma ou de outra. A L3Harris, que resultou da fusão da L3 Technologies com a Harris, fabrica nomeadamente um dispositivo chamado StingRay, que é usado para vigilância de comunicações por telefone móvel, e que tem a possibilidade de emular uma antena de torre celular, assim captando as chamadas dos alvos de vigilância. É fácil ver como produtos como os da NSO podem ser usados em tal cenário. Não apenas captar as comunicações, mas usar mesmo essa simulação de antena para instalar software de espionagem eletrónica nos telefones.

Que não tenhamos grandes esperanças de que tal não venha a acontecer só pelo negócio atual não se ter concretizado. Não é certo que tal cenário não seja bem-vindo por uma futura Administração norte-americana (obviamente, já para não falar de que algo semelhante será decerto possível noutros países com regimes com graus menores ou nulos de democracia e culturas de secretismo mais fechadas do que a dos Estados Unidos).

E se a L3Harris não o fizer, outros se apressarão a preencher tal espaço. É certo que é extremamente desejável para muitos governos e outros atores uma solução “all-in-one” que permita a interceção de chamadas de outros tipos de comunicação – nomeadamente as efetuadas através de Apps como não apenas WhatsApp mas igualmente Signal ou iMessage. Ou seja, ainda que a cifra seja “end-to-end”, fitar o sistema captando as mensagens no dispositivo, tirando partido de falhas “zero-day” e não em trânsito. Estamos em terreno em que os intervenientes têm recursos praticamente sem fundo e a determinação para levar a cabo as mais difíceis das missões de ciberespionagem.

O que ainda não acontece – é só uma questão de tempo até acontecer.


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